Minha irmã e eu pintávamos gravuras na mesa da cozinha. Era alta noite, a lua mal se abrira em uma fatia de luz e fazia um tempo quente. Havia vasta penumbra lá fora. A lâmpada que iluminava o cômodo era tênue e descia de um emaranhando de fios desorganizados, suspensos, enrolados com emendas e algumas teias de aranha. A iluminação tinha a força de uma lamparina e estava em acordo com todo o resto: as paredes sem pinturas e manchadas de gordura, o chão vermelho rachado e desbotado, a poeira que revestia os móveis igualmente vermelhos, essa cor entre outras funções escondia o desgaste do tempo na velha mobília, que era tão velha quanto vermelha.
Pintávamos em silêncio, aquele era o único cômodo onde tal atividade era possível de ser executada e apenas o ruído dos lápis de cor acetinando o papel, sendo depositados e retirados da mesa. O ar seco envolvia-nos, o vento quente entrava pela janela em lufadas silentes.
Havia algo no ar, uma angústia sem palavras fustigava as paredes da casa velha, as janelas e portas de madeira grossa rangiam agora de um modo diferente. De repente, fomos tomadas de sobressalto! Um gato preto com brilho ligeiramente ocre em sua pelagem vindo da rua acomodou-se na cozinha e permanecia invisível até que deu um urro sobrenatural e começou a atirar o corpo nas paredes da cozinha. Quanto mais urrava, mais jogava-se em piruetas pelo ar, do teto ao chão, chocando-se freneticamente entre uma parede e outra. Quanto mais o espetáculo se seguia mais ficávamos imobilizadas e os movimentos do gato gorducho e peludo tornavam-se delirantes em voos disparatados.
A cada pancada na parede caia e saltava de novo num miado enlouquecido até que o ápice dessa aparição seu deu e num salto contorcido o gato preto enroscou-se na fiação desgrenhada da cozinha e com as quatros patas abertas no ar balançava enquanto a lâmpada bruxuleava. Os ponteiros do despertador enrijeceram e o tempo parou nessa visão extraordinariamente sobrenatural.
Os pelos negros-avermelhados do gato atrás do feixe de luz formava sua sombra movente na parede e como um gênio que sai da lamparina, num último balanço ágil desvencilhou-se dos fios e voou rumo a janela aberta na noite.
Nunca mais o vimos! Só a sua sombra ficou desenhada nas paredes. Um concidadão qualquer narrou outro dia ter visto a silhueta de um grande gato negro pendurando na ponta da lua.
Valéria! Me lembro dessa história do gato, contada por você, há tempos atrás! Que bom que se transformou nesse bonito texto. Parabéns