O Espelho Apaixonado

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À  quem sempre 

achou mais Bela a Bruxa do que a Branca.

Após tantos anos declarando o seu amor aquela esguia dama, diariamente repetindo o elogio esperado: não há mais bela em todo reino, minha senhora! Por cem anos todas as manhã a admirava, a amava, a elogiava desmedidamente, apenas para ele, ela era a mais bela, sempre bela e sempre amada! Apenas as areias na ampulheta em tantas idas e vindas compreendia o ciclodrama de seu amor. Um espelho negro enamorado, com sua sabedoria e seus séculos. Um espelho sedutor, de irretocável fidelidade. Mas ele mesmo nunca era notado, sua moldura brilhante, sua superfície polida, seu fundo de turmalina negra, onde todas a manhãs encarnava a face de sua paixão. Dedicado, de sorriso pontual e surpreende quando anunciava com austeridade e delicadeza “És a mais bela, Senhora!” Sempre…

 Um dia o espelho imaginou um estratagema: dizer que havia outra mais bela e quem sabe ela se desprenderia de si mesma, como quem diz: isso não tem mais importância! E finalmente reconheceria o espelho e o veria, como ele a via! Então, o espelho também sairia de si mesmo, do seu casulo de rocha e estanho e, em forma humana e masculina a tomaria pelos braços como só um homem apaixonado o faz e a conduziria pelo quarto em uma dança, ainda que não houvesse música… a primeira dança, o primeiro beijo… e a esperança de que  levaria em bodas para dentro de si mesmo e ambos viveriam para sempre no reino dos espelhos, refletindo uma felicidade eterna!

Mas nem toda sabedoria do espelho poderia prever o resultado do encontro da vaidade com a inveja no olhar de uma Senhora. Nada saíra como planejara, ao saber que não era a mais bela, num único golpe  estilhaçou o espelho desenhando longas ramagens, de finas trincas em sua face refletida. Gotas transparentes como orvalho,  qual um vidro líquido brotou do fundo, como se o espelho respirasse, chorasse e agonizasse. Ela deu de ombros e as costas para o espelho, pensando como reverter a sua última constatação, enquanto pensava em estratagemas de pentes, frutas envenenadas para eliminar dessa existência “a mais bela” e recuperar a posição perdida.

 O espelho, sábio guardador das imagens no tempo e que preservou a beleza intacta da senhora, reconhecia agora a face de sua alma e tomou uma sábia decisão: saiu do vidro como um vento e num golpe de mágica que só os espelhos saber fazer,  atirou  a senhora com tudo para dentro do espelho e aprisionou na vasta dimensão entre o vitral transparente e a turmalina negra, com a certeza de ela passaria agora a eternidade sabendo que não era a mais bela… Congelada no espelho sua face permaneceria a mesma, mas nunca a mais bela…

O homem alto, de sobre casaca, saíra do espelho e abria agora a porta e uma lufada de vento o atingia, como um sopro de vida e ele saia pela primeira vez, com a felicidade imensa de ver a beleza da vida com os próprios olhos e refleti-la apenas em sua retina, e isso valeria mais que qualquer eternidade cujo o feito lhe custara, mas como era plena sua liberdade em ver  e caminhar pelo o mundo!

A liberdade e a beleza são como o amor e a estética: só os tem quem neles souber acreditar.

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