A paisagem de onde vim sabe o ser dentro de mim

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Eu vim ao mundo num balão cujo o cesto foi depositado no berço da casa. O berço era simples, feito de madeira e colchão de palha. Porém, estava coberto por um lençol branquinho todo bordado com flores delicadas e cores vivas. Em meu sono elas eram o perfume do meu sonho.

Quando abri os olhos estava numa casa de campo daquelas de outros tempos com fogão de lenha e chaminé. A casa de madeira ficava no fundo de um vale, de colinas suaves e cortado por um rio. Nas noites claras, a lua vinha beber a água desse rio e gostava tanto da suave correnteza que a lambia de lábios frescos como se a beijasse. Arrastava o luar sobre a várzea como um véu dourado na escuridão.

O rio tornava-se então um grande vaga-lume líquido acendendo a noite. Com poder de espelho o rio unia-se a lua. A lua e o rio amavam-se em núpcias das cheias. A cheia das águas e a lua cheia faziam uma verdadeira noite de verão transbordando luz e calor, contando uma história de magia e mistério….

Eu cresci com essa visão magistral do mundo enquanto paisagem, num vale vivo e cheio de sons, ornítossonoro no qual um coral alado acompanhava a visão do esplendor, pássaros e também insetos uniam-se em cantigas.

Eu já escrevia histórias na minha imaginação e as estrelas revisavam e anotavam, ainda hoje quando preciso de um tema olho para o céu e o vejo nelas escrito. Descobri com meus olhos de menina assustada que quando se quer por destino escrever é melhor salvar nas estrelas…

Deste rio saíram ás águas que hidratam os meus caminhos e também as areias dos meus desertos, assim, sou feita dessas matérias água e aguapés. Sou feita das sensitivas, das avencas que brotavam em suas margens. Dos Ingás que a correnteza levava. Da força das samambaias ao vento, da beleza e do mistério das Contas-de-Nossa Senhora no pântano da qual se fazia o rosário e os adornos que outrora usávamos…

Minha alma tem as asas transparentes da libélula no verde vitral das águas e tem a flanância delicada de uma borboleta branca sobre a flor do maracujá na abundante e espessa ramagem. E não vem a fruta da paixão também de uma flor azul?

Sou a borboleta, a flor de maracujá e a libélula num sincretismo de esperança.

Fiquei triste o dia que percebi que não seria criança para sempre e temia o dia em que meus melhores amigos, que sempre me levaram pela mão, não estariam mais comigo: minha mãe e meu pai.

Hoje eu sou o mundo que carrego dentro de mim. Este mundo chama-se vivido irmão do tempo e do espaço.

No vivido estão todas as pessoas que amei, a paisagem do qual sou parte com seus seres que são também o meu ser. Um physalis do passado, dourado, que guardávamos no telhado, meus irmãos e eu, para o nosso anjo-da-guarda.

Hoje, sei que provei da vida e ela tem gosto de amoras. Amoras roxas como nossa memória cor de sangue e sentidos.

Eu vim desse berço azul de sonhos, das águas de um rio. Vou em direção a nascente, em busca do jorrar da fonte e o próprio vivido é o romance da minha vida.

Fotografia: Givaldo Corcinio Jr.

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